Em direcção ao Cáua

Foi em Julho que decidi apanhar boleia no cruzamento entre a estrada para o Úíge e a rua que descia do Congo Agrícola para a Feira do Negage. Pedi a vários camionistas, supliquei-lhes até, e nada de boleia. Diziam: "Não transporto cabeludos"; "É perigoso com esta revolução em Portugal"; "Sei lá se me estás a dizer a verdade!". Eu, que viajara de Luanda ao Huambo - para ver o Peixinho e o Nicha, mais o Santos Pêras com o seu Subaru -, sem qualquer recusa de camionista, estava impedido de me deslocar para a minha terra e na minha zona. Era o início das desconfianças do processo político tendente à "Dipanda"(1). Era o ano de 1974.

Continuei a insistência com o polegar ao alto e continuei a pé. Já perto do controle e cruzamento do Negage/Uíge/Púri a "Yamaha" 50 parou e veio o convite: - Para onde vais? ...

-Sobe.

Só parámos no Quiputo para beber uma Cuca e arranjar combustível. E foi, então, que veio a revelação:

- Tu és branco, ninguém te desconfia. Vais mesmo levar estes documentos e esperas que falem contigo. Por isso, vais ter de apanhar outra boleia até à Damba ou até Maquela.

E foi assim, de surpresa, que me vi a meterem-me na minha pasta de tiracolo, um conjunto de papéis em 3ª. via, que só revelavam números sobre a economia de Angola.

Três dias depois, a abordagem não podia ser mais surpreendente! O furriel das Forças Armadas Portuguesas dirigiu-se-me e ordenou a entega do "papéis". Que tinham de seguir para Kinshasa, disse, secamente. E agradeceu, pagando-me uma cerveja fresca e deixando-me com três cigarros "AC".

No ano anterior, tinha ocorrido a Feira agrícola e pecuária do Negage, com mais sucesso! Eram os charoleses de Camabatela, o touro do "Costas, Lda" e os porcos "Dimuca" as estrelas da Feira. Os visitantes acorriam e à noite havia fados! Angola, a província de Angola, atingia números impressionantes de desenvolvimento económico. Bebia-se o "Jonhie WalKer" e o "Black Label" com soda, prometiam-se mil anos de Portugal em África e exportações de carne bovina para a Europa. Nunca, como até ali, houvera tantos professores nas aldeias rurais e se ensinara tanto português.

Mas já era tarde!

As folhas em 3ª. via sobre as receitas e despesas do Estado Angolano já percorriam os caminhos do mato até às rectaguardas dos nacionalistas, por valores bem baratos e singelos: uma cuca, cigarros e a ingemuidade política de uma boleia em "Yamaha" de 50 centímetros cúbicos!

(1)Dipanda=independência;

gaspar e fernandes

De repente, dei com esta imagem na "net".


Num instante, estava a ver-me a ver as montras desta loja, a descer a rua em direcção à Capôpa, a passar em frente da casa do velho "Ginja", do Stwart. Ou, descendo por outro lado em direcção ao Cáua, a cirandar na alta varanda da casa, bem colonial, do velho Sequeira. E adiante, uma papelaria onde se comprava a "Bola" ou se adquiria a "Photo" ou o "L'automobille" por antecipada encomenda.


Que belo filme me envolve, onde se contam verdades com mentiras, se fez e se faz história.


A foto está tremida, como tremidas estão as lembranças, mas o anúncio não deixa dúvidas, agora já não é "Gaspar & Fernandes Lda", mas "Gonçal ... inho(?) & Filhos, Lda".


Outra virada nos tempos e era ali, bem perto, que funcionava um posto aduaneiro - bem no centro de uma encruzilhada de estradas e caminhos -, nos anos quarenta, quando "Ngaje" era uma povoação comercial, sede do posto de Dimuca, concelho de Ambaca, e que foi, em parte, a razão da projecção desta cidade!


Onde, na foto, está terra batida preparada para receber alcatrão, já foi alcatrão e se calhar, picada! Outra virada na história, e teremos um aeroporto em vez de uma base aérea estratégica, que a Unita tanto cobiçou e várias vezes conquistou, nos anos noventa. Foi a guerra, foram as guerras que desgastaram o alcatrão e fizeram nascer um outro NEGAGE, que a foto evidencia, e de que não pode deixar de nos emocionar com saudades, também, do futuro.


E, assim, Angola avança.

O Primeiro

Há sempre uma primeira vez. Há sempre uma oportunidade para recuperar o tempo perdido. Chegou a hora de começar este blog com o sugestivo (para mim) nome de "Quiputo".
A seu tempo, explicarei por que se chama Quiputo a este blog.
Para já, regojizo-me com a notícia da inauguração de livraria no Negage, em Novembro de 2010.
Pois, é assim!
Pois, é deste modo que Angola avança !
E isto não é surpresa, é apenas a evidência da voracidade de um povo que esperou muito tempo, demasiado tempo.
A editora Mayamba, dirigida por Arlindo Isabel é a proprietário do espaço, que foi inaugurado por um uigense de nome Luis Fernando, jornalista e escritor, com uma sessão de autógrafos no lançamento do seu livro "Um ano de Vida".
E pronto, Angola vai-nos surpreendendo. E como nós gostamos que Ela nos surpreenda!